Você sabe como acabou assim, não sabe?
Desde muito novo você começou com isso. Tem esse “incrível” dom de mascarar, inibir suas emoções. E você gosta disso, eu sei que gosta. Tantas palavras corteses revestidas de ironia velada, quantos sorrisos secretamente vazios. Ah, o vazio. Você acaba por conhecê-lo intimamente seguindo por essa trilha. Aquele que as vezes tenta se ignorar, jogar para debaixo do tapete. Mas ele sempre acaba agarrando teu calcanhar, e te derruba. Te dilacera. Mas você gosta, não é mesmo? Afinal, você é feito de máscaras. Máscaras pútridas, máscaras profanas. Mas ainda assim, máscaras.
E você as usa sempre que pode, sempre que é preciso. O engraçado é que isso ocorre o tempo todo; tenho certeza de que até quando está sozinho em casa esquece de tirá-las. Porque eu lhe conheço, Judah, talvez mais do que você se conhece. Na verdade, eu tenho certeza disso. É parte da minha natureza, não estranhe.
Mas existe um porém. Apesar de ser muito bom nisso, e dominá-las completamente, você erra. Você erra por ser humano, por sua imaturidade. Por mais que doa ouvir, você é imperfeito. Existem ocasiões em que você usa as máscaras erradas, com as pessoas erradas. Interpreta as ações de uma maneira burra, se me permite a liberdade. E foi assim que você acabou aqui. Pelas suas imperfeições, os buracos em sua “personalidade”. Se é pode-se usar essa palavra com você, rapaz. Mas olhe ao seu redor, a culpa disso é de sua inteira responsabilidade. Você está onde menos imaginaria estar.
No limbo. No purgatório.
”Out here the good girls die.” Foi a primeira coisa que você viu ao erguer os olhos. Estava escrito no alto de uma parede, em letras garrafais que pareciam sangrar pela tinta que escorreu. Eu sei que você quis se soltar, lutar contra os dois que o carregavam com tanta facilidade; vamos combinar que você não é exatamente ameaçador. Mas estava preso, as marcas das cordas ainda jazem em seus pulsos. A pele esfolada pelas constantes tentativas de se soltar.
E havia a dor. Ah, a dor era terrível. Todo o lado esquerdo de seu rosto estava dormente mas ainda conseguia sentir o liquido viscoso que manchava seus lábios e escorria por eles. O gosto forte de ferro ainda é recente não é mesmo? Aposto que se fechar os olhos agora mesmo ainda pode senti-lo. Era tudo o que sentia, além da confusão mental é claro. A área do soco latejava e a dor vinha em ondas. Ia e vinha com a maré. Mas sempre ali.
Quando te jogaram naquela sala, foi quase um alívio. Consigo ainda me lembrar da sua respiração ofegante, a testa colada no chão do mesmo jeito que te largaram. Te jogaram no chão e foram embora. Tentavam pisar em seu orgulho, mas Deus sabe que ele já estava em pedaços muito antes disso. E não seria isso que o faria recuar, implorar por sua vida.
Chorar de desespero.
Não, isso não funcionaria. Não com você, Judah. Mas havia algo ali dentro, algo que você nunca havia notado. Mas agora o consumia, crescia em seu peito cada vez mais. Eu sei o que era, você sabe? Talvez soubesse até na hora mas tinha medo de admitir. É, meu bem. Você estava com medo de aceitar suas emoções. Irônico, não? Mas era isso, você sentia. Por mais que sempre tenha reprimido, por mais que sempre vestisse falsas emoções para disfarçar as genuínas.
Mas ali você não podia fazer isso, querido.
Era a primeira vez que sua vida estava legitimamente sendo ameaçada, e você teria que lidar com esses conflitos internos. Chegou a hora de crescer, Judah. Provavelmente agora você já tinha noção do que rugia em seu âmago, se espalhava e tomava conta de tudo como ervas daninhas num jardim qualquer. Era raiva. Muita, muita raiva. Ouso dizer que não só das pessoas que o jogaram ali, mas raiva de si mesmo. Por ter sido tolo. Tolo como aqueles que você tanto despreza, não é mesmo?
Mas antes que pudesse aprender a abraçar uma de suas primeiras manifestações legítimas de emoção, a porta se abriu. O ranger das ferraduras te arrastou de volta para a realidade, até pensou em virar seu corpo dolorido para ver quem entrava; ainda estava na mesma posição que o deixaram, mas era melhor assim. De bruços, jamais imaginariam que haveria qualquer resistência. Mas tenho certeza que por pouco você não cuspiu seu sangue no rosto daqueles que te levantaram. Eu sei que sim. O que te impediu provavelmente foi o vislumbre de uma possível reviravolta.
Tratou de parecer o mais derrotado possível. E fez um ótimo trabalho com isso.
Uma vez sentado, demorou até que suas pupilas se adequassem a luz que saía do teto. E ai encarou a figura em sua frente. Seus cabelos longos escorriam pelo ombro direito, já que o lado esquerdo da cabeça era raspada. Era jovem, mas ainda assim mais velho que você. O que não é tão difícil.
— Olá, garoto. O tom de deboche o fez ferver, você finalmente abraçava a raiva. Só que ainda é falso, sua máscara tinha rachaduras. Mas ainda estava lá, cumprindo seu papel. — Soube que estava mexendo onde não deveria, não é? Com um sinal, ele fez os dois grandalhões saírem da sala. Você não era uma ameaça.
Você conseguiu.
Conseguiu não só isso, como aquele silêncio constrangedor que assola os interrogatórios. Baixou os olhos e encarou o vazio aparente. Tinha até dúvidas se conseguiria falar mesmo se quisesse. Seu maxilar ainda doía e havia sangue demais escorrendo de teus lábios.
— Para quem você trabalha, criança? Seu tom parecia mais ríspido, mas você não se manisfestou. Continuou parecendo fora de si, quebrado por fora e por dentro. Em pedaços. Mas a explosão não veio de você, veio dele. O viu revirar os olhos e se erguer num pulo. — Talvez você queira algum incentivo para falar.
Ele puxou seus cabelos loiros e te ergueu até seus olhos se cruzarem. A dor era lacerante, mas você não se deu ao luxo de grunhir. Isso seria… Demais. Mas o outro rapaz era insistente, certo? Com uma adaga em mãos a posicionou diretamente na sua jugular; estava ajoelhado em cima da mesa, era fácil dessa forma. E você adorou. Ah, adorou sim. A situação estava indo até onde você queria, mesmo com o aço gelado ameaçando rasgar sua traqueia.
— Você acha que pode se meter conosco assim, e esperar que sejamos razoáveis? Garoto, você tem muito a aprender. Vou perguntar mais uma vez. Para quem você trabalha?
Dessa vez, seus lábios se moveram. Não muito, é verdade. Sua garganta estava seca e o sangue parecia coagular. O que era um tanto desconfortável. A voz saiu vacilante, trêmula.
Você é um ótimo ator, Judah.
— Eu não… Eu não sei o que você… Quer dizer Só não esperava pelo tapa, que o fez girar e mais uma vez encontrar o chão. Se encolheu e dessa vez legitimamente. Haviam pontos de dor por todo o seu corpo naquele momento. Mas agora deveria agir, era o seu momento de se opor ao que lhe proporcionaram. Finalmente reagir. E sua revolta veio na forma de um chute. Não é a forma mais elegante, mas você conseguiu. Meu bem, você o jogou contra a mesa. E ele soltou a adaga.
Soltou o seu passaporte para fora dali.
Com um giro, você a pegou; mesmo que tenha cortado os nós dos dedos no processo. Afinal, estava amarrado e praticamente não conseguia mover as mãos. Só que aquilo? Ah, aquilo você precisava muito. E estava disposto a fazer qualquer coisa para se soltar. Estava disposto a matar, para não ser morto.
E quando ele viu o pedaço de metal em sua posse seus olhos se arregalaram. Talvez você estivesse cego pela raiva por não ter considerado que ele reagiria, mas eu não o culpo. Afinal, ainda está aprendendo a lidar consigo mesmo. Mas ainda assim recebeu um golpe no estômago. Seu agressor desceu da mesa lançando o calcanhar contra seu abdômen, e doeu muito mais do que se imagina. Do que você imaginava, pelo menos. Teve de cerrar os dentes para não gritar, mas havia sangue por toda a parte. Toda. A. Parte.
Felizmente você conseguiu revidar, teria sido muito pior. Tirando forças sabe-se lá de onde eu sei que você contraiu seu corpo envolvendo a perna do oponente com ele, usando seus dentes para morder o calcanhar desprotegido. Só precisava que ele se afastasse, para poder agir. Finalmente livrar suas mãos. Mas não foi isso que aconteceu.
Seu nêmesis gritou de dor, mas não se afastou. O que importa é que o punho dele desceu. Como um raio. Uma punição divina.
E você ouviu um… “Crack”.
Talvez tenha sido psicológico (ou talvez não), mas você não sentiu nada quando seu crânio foi atingido. Curiosamente, nada.
Assim como você, Judah! Você é tão insignificante como a dor que sentiu ali. Mesmo que não goste quando eu lhe digo isso, é o meu dever.
Mas então você viu as trevas.
As trevas que nunca se vão. Você não se lembra, mas nesse momento seus dedos se afrouxaram. E você apagou.
Chegou ao seu limite físico. E apagou.