O anoitecer transforma aquele pequeno distrito comercial em outra coisa — o estrangeirismo que sinto é sempre uma sensação fascinante. Ali, pela única e redonda janela do que posso chamar de quarto, fico admirando as luzes que surgem e os transeuntes seguindo com suas vidas. É uma nova canção, contemplo. Mais animada, agitada, embalada pelas vozes que guiam aquele cotidiano noturno. É natural que eu veja pessoas não tão comuns àquele bairro. A brisa refrescante também é muito bem-vinda para afastar o calor de primavera.

Quase me dá vontade de descer. Mas aquilo não era sensato. Os últimos dias haviam sido exaustivos e corridos — mais valia aproveitar aquele curto período livre, fora do trabalho na mercearia ou entre missões, para revisar e estudar meus conhecimentos. Mas a vida lá fora era um atrativo cativante demais. O pergaminho já estava entocado em minhas mãos havia alguns minutos. Talvez eu devesse dar uma volta, penso, para espairecer. Não é necessário muito convencimento. Enrolo o pergaminho abandonado e o devolvo cuidadosamente para minha estante; troco de pijama noturno para vestes um pouco mais protegidas àquela brisa — resfriados eram bem caros, eu bem sabia —, e finalmente desço as escadas para partir. Ouço algum comentário ácido de minha mãe, mas só posso deixá-lo passar com a promessa de voltar logo. Enfim, sou recebido pela noite simples daquele distrito. Me preparo para uma caminhada noturna sem um destino programado, não pretendendo retornar tarde.

Meu auxílio na cozinha sempre é uma tarefa árdua. Não necessariamente pela atividade de cozinhar em si, em que não sou de todo terrível — apesar da margem de erro pender para fracassos no ramo da confeitaria. O clima de estar ali com minha mãe sempre é amedrontador. Atenção, atenção, atenção, siga a receita — é o mantra que recito mentalmente para não tomar uma bronca angustiante.

Estamos numa fase de oferecer iguarias para a primavera, onde o clima um pouco mais ensolarado é o suficiente para movimentar um pouco mais da clientela que visita nosso comércio. A baixa vendagem durante o inverno já fora o bastante para deixar a matriarca Hōzuki irritadiça e paranoica; o que resulta em uma frequência exaustiva de trabalho triplo. Ali estamos, suados com o vapor quente que flutua do fogão e transforma nossa cozinha numa sauna. Mais uma fornada de bolinhos da lua sai estalando e ela resmunga:

— Não está bom. Queimou ali, ó — ela diz, apontando para um bolinho que me parece perfeito. Também não consigo identificar nenhum cheiro de queimado, mas os anos me ensinaram a duvidar da sensibilidade que ela tinha para aquilo. Ela se volta para mim, brava. — Essa era sua responsabilidade. Você está piorando. Como consegue?

— E-eu... tenho outro trabalho agora.

As palavras escapolem da minha boca sem que eu consiga retê-las. Estou pronto para ouvi-la assumir o tom mais ríspido que conheço, ou então me dar um tapa; ela não faz nem um nem outro. Sua expressão ganha tons de incredulidade por alguns momentos, como se um fio de pensamento tivesse sido cortado. Então, suas feições morrem.

— Então suba. Vá pro seu quarto. Eu cuido do resto.

Sua ordem não abre espaço para objeções. Uma culpa aterradora me acomete, mas não há o que fazer. Subo rapidamente as escadas que levam para a dispensa aonde durmo e não olho para trás.

Meu passeio ao meu pequeno paraíso é envolvido por uma brisa cálida. Bebo um gole da água do cantil para finalmente umedecer os lábios, e paro finalmente para apreciar a visão. A noite iluminada reluz em um mar de pétalas douradas dos crisântemos. Danço entre elas, deslizando meus dedos delicadamente por suas folhas, lembrando do meu treinamento com a Arte Ninja da Flor. Aquilo era curioso; o pequeno jardim secreto era uma visita recorrente desde que consigo me lembrar. Porém, minhas idas recentes representavam momentos tão obstantes na minha vida, principalmente após meu início no caminho shinobi, que parecia haver mais tento que o real entre elas.

Desde minha última visita, naquela manhã gélida de inverno que simbolizava meu décimo terceiro aniversário, um universo de coisas havia se desprendido. Hakari e Nanami. Todas aquelas missões, o progresso, a busca por me fortalecer, as novas técnicas ao meu arsenal... Sento-me na grama e inspiro profundamente o aroma das flores. Sò posso rezar para que aquilo seja o suficiente; que signifique que não serei um peso morto em batalha. Lembro novamente daquele campo de crisântemos salpicados de neve... e a neve me lembra de Kira. Suspiro. Aquilo de novo... não. Deslizo as pétalas douradas de uma flor próxima enquanto minha mente flutua. Uma infinitude de acontecimentos representava o começo da minha vida shinobi, e ainda assim, havia um sentimento assolador sob minhas costas: de que coisas piores e mais perigosas estavam por vir. Afasto aquele calafrio culpando a brisa da noite — apesar do calor notável.

Respire fundo. Repetir aquele mantra não me ajuda tanto, então só posso afundar o travesseiro no rosto pela primeira vez. Meu coração bate acelerado e isso está além do meu controle. Detesto isso. Vi a morte no deserto, saí numa missão com um time muito promissor, fiz uma peregrinação pelos arredores do País da Água sozinho, e ainda assim... O que me deixa naquele estado é um rapaz peculiar com um chifre estranho na testa.

Me levanto de prontidão, encarando a única janela redonda que permite meu quarto ter alguma fagulha de liberdade. A noite primaveril é quente lá fora, e infelizmente não sou capaz de observar a lua daquele ângulo. Uma lua pungente e brilhante como a de ontem, talvez? Ontem... Apenas um dia e eu já estou confundido as coisas. Suspiro de novo. Encaro minha mão, observando a pele pálida daquele corpo frágil. E ainda assim... Uma coisa bela como eu, foi o que ele disse. Sinto meu rosto arder. Lentamente, levo a mão até meu rosto, próxima ao meu nariz, aonde o rosto daquele rapaz chegou tão perto a ponto de eu sentir sua respiração fazer cócegas em mim...

— Nhhmmm!

Solto um gemido incompreensível antes de afundar o rosto no travesseiro de novo. Me jogo de volta na cama, o coração batendo forte, a cara quente... De repente, meu pijama parece quente demais. Devo estar ficando doente, penso. Ou... louco.

Respiro com dificuldade, recuperando meu fôlego num arfar só. Gelo, é só o que consigo pensar. Aquela banheira — sempre fora tão pequena assim? — era um jardim gélido aonde eu tentava afogar com rispidez tudo... aquilo. A chegada do verão havia trazido com ela uma febre desagradável para aquele corpo fragilizado. Calma, era somente isso? Os acontecimentos recentes pareciam ter aberto feridas antigas, e o frio era puro sal.

Ali, na água — meu habitat e minha maldição —, minha pele parece mais pálida e delicada. Fraca. De onde vem essa súbita falta de confiança? Quer dizer, não é como se ela fosse estrangeira. Ainda assim, muitas coisas tinham acontecido, não? O suficiente para espantar esse sentimento que me era tão habitual, a ponto de deixá-la apenas como uma leve irritação atrás da orelha. E apesar de tudo... Tento traçar o que pode ter me deixado daquele jeito. Não tinha a ver com o Time 2, certo? A aventura em Uzushiogakure parecia algo tão distante agora. Mas aquela cobrança em relação aos meus companheiros já havia passado. Então... Só conseguia pensar em uma nova figura realocando minhas prioridades.

Mergulho parte do rosto na água fria, buscando afogar aquele incômodo. De alguma forma, o gelo pareceu amornar.

O vício já me é tão natural que o encaro como uma necessidade de sobrevivência. É nossa maldição, afinal — penso enquanto escorro da cama naquela madrugada sem a menor vontade. Um clã fadado à desidratação, um lembrete eterno de que nosso lugar de direito é o mar. O verão não ajuda. Minha garganta é de uma secura infinita. Desço da dispensa onde durmo tentando não fazer nada de barulho, saltitando pela escada e desviando dos degraus que já sei de cor onde rangem.

Para minha surpresa, não fui só eu quem acordou cedo.

— ... e ele tá trazendo dinheiro pra casa, não tá? — Reconheço a voz áspera do meu avô, claramente inebriado pelo álcool. Ele ri. — Eu num dava nada por aquela mocinha, mas num é que ele tem culhão mesmo?

— Ele não é moça — minha mãe sibila. Ouço o som metálico da louça. Lavando essa hora? Deve ter servido algo para meu avô comer depois de uma noite de bebedeira. — Ele ainda é moleque. Daqui a pouco ele larga isso pra lá. É bom que ele aprende a viver um pouco, depois...

— Depois o quê? Ele vem cuidar da mercearia? Pra voltar a vender legume? — meu avô gargalha. Seria alto o suficiente para me fazer acordar, e então escuto um ruído de reprimenda da minha mãe. Ele prossegue, então, um pouco mais baixo: — O garoto é homem, Nabetsuna. Pelo menos, finalmente provou que é um... Cê acha que ele vai abandonar o que conseguiu depois de sentir o gostinho da liberdade? Sem a mamãe mandando nele? Ah, para... Eu sei que você não entende isso, é mulher, tanto é que não entendeu quando...

— Quando o quê? — Ouço outro baque de metal, como se ela tivesse largado algo de propósito. Em minha mente, conseguia visualizá-la virando-se para meu avô com os braços cruzados. — Hein?

Há um momento de silêncio. Quando meu avô volta a falar, é aquele tom de voz maldoso que me dá arrepios — o mesmo que sempre usa para caçoar de mim. É o álcool falando, minha mãe me dizia. Bem, o álcool era cruel e sorrateiro.

— Quando seu maridinho decidiu te largar e levou tua filha junto. Porque você é fraca. — Ouço um arrastar de cadeira; meu avô se levanta. — Qual vai ser a desculpa quando esse daqui for embora? Vai inventar que morreu também?

Ouço passos. Há um silêncio sepulcral além disso.

— Saia — minha mãe rosna, porém, o som da porta principal sendo aberta ressoa junto com sua ordem; meu avô já estava de saída.

O som que resta é inédito: minha mãe soluçando. Nunca a ouvir chorar. E quem dera eu ali, encolhido na escada, tivesse apenas esse motivo para ficar chocado. Uma eternidade se passa até que ela finalmente saia e eu possa enfim me esgueirar por um copo d'água. Apesar da sede saciada, há algo preso em minha garganta que é difícil de descer.

A caminhada tinha deixado de ser sobre a entrega daqueles legumes há um certo tempo. Durante todo o percurso, minha mente tamborilava e se demorava em outra coisa — aquela informação com gosto de arrependimento, um amargor quase sulfúrico. Como agir quando você sabe de algo que não deveria? Algo tão aterrador, tão disruptivo, tão... surreal. Não havia com quem conversar, ao menos não em casa.

O clima havia conseguido ficar pior do que o habitual. Depois de ouvi-la chorar — um ato tão surpreendente quanto aquele segredo de família —, seus direcionamentos à mim estavam mais ríspidos do que o normal. Estava inquieta e irritadiça, derrubando as coisas com frequência ao longo do dia de trabalho na mercearia e sendo muito mais grosseira contra pedidos de descontos. Eu não tenho culpa, tive vontade de dizer, mas obviamente nunca o fiz. O arrependimento logo virou uma angústia um pouco raivosa. Você também o tirou de mim. Ele e a minha...

Uma irmã. Mais velha, provavelmente — tinha de ser. Eu teria alguma lembrança se fosse mais nova, já que o rosto do meu pai ainda existia no subconsciente; apesar de já ser uma figura enevoada e disforme. Por tanto tempo, éramos eu e ela. E agora a outra metade oculta simplesmente surgia, ao menos para mim... O que restaria de nós com uma mentira dessas nas costas? O que sobra além da família? Dos laços?

Enfim, estou terminando de entregar a encomenda da nossa mercearia. Faço o caminho de volta sentindo um turbilhão em toda minha existência com a irreverente verdade pulsante: ignore e siga em frente.

A poeira significa a ruína para meus problemas respiratórios. Ainda assim, mantenho-me vidrado com a leitura. Lendas piratas do universo do clã eram um acalento mágico em noites de nervosismo. Com muita facilidade, eu conseguia me transportar para uma proa arrebentada em alto mar, num navio envolto em tempestades e relâmpagos. Quanto mais eu envelhecia, a veracidade daquelas histórias tornava-se cada vez mais frágil, mas ainda assim era o suficiente para espairecer os pensamentos conturbados.

O conto em questão narrava o ponto de vista de uma corsária sanguinolenta chamada Akiyo, de pseudônimo "Causadora de Lutos" — pessoalmente, minha favorita. Os detalhes grotescos de seus atos violentos eram de revirar o estômago, palavras traiçoeiras que me impediam de prosseguir na leitura. Talvez daí viesse o fascínio, o mistério em sua malícia. A ruiva era capaz de atrocidades em prol de fazer seu nome ser temido pelos oceanos.

Aquele nível de carnificina não me aprazia nem um pouco. Minha mente, agora, voava inevitavelmente até o deserto do Rei Vampiro — um desastre traumático em forma de memória. Ainda assim, havia um convite sedutor naquela liberdade fora da lei completamente inalcançável para mim — o frio metálico da bandana em meu pescoço era um lembrete permanente. Prossigo com a leitura com sentimentos conflituosos.

— Eu não vou pagar por isso — a senhora diz com uma audácia mordaz. Ela ergue a laranja efusivamente, revelando a região magoada e molenga. — Olha só, tá podre.

— Você é burra ou o quê? — minha mãe retruca. Ela arranca a fruta das mãos da idosa. — Você por acaso já viu uma fruta cair no chão? Elas ficam feridas, mas não significa que estragaram. Você bem devia saber disso, não? Não caiu e quebrou o baço há um tempo atrás? Por acaso foi assim que você apodreceu e virou uma velha sorrateira e intriguista?

A senhora Nigihiko está escandalizada. É assustador o rumo que aquela discussão está tomando. É pra eu intervir? Não, não cometa este erro de novo. Melhor ficar quietinho. A idosa começa a fazer um escarcéu entre os poucos clientes que estavam na mercearia, bradando e erguendo as mãos. A discussão vai até a entrada da loja.

— É o cúmulo! Essa mulher quer me envenenar e ainda quer que eu pague por isso — ela anuncia para alguns transeuntes que olham assustados — com o quê? Um sorriso no rosto?

— Não, o que eu quero são ryōs, mesmo — minha mãe diz, aumentando o tom de voz igualmente. Ainda com a laranja nas mãos, ela mostra as presas de tubarão e, num movimento rápido, dá uma baita mordida na fruta bem na área ferida. O sumo da fruta se espalha por suas bochechas e escorre pelo pescoço; que cena animalesca. Essa era a verdadeira forma da Tubaroa Sem Descontos. — E então, sua mula? Eu estou me envenenando, por acaso?

Vejo a senhora Nagihiko recuar um pouco. Está estremecida e meio desnorteada. Com aquele sinal de derrota, ela parece decidir se render.

— Sua louca — ela rosna enquanto sai. — Eu nunca mais piso nesse muquifo.

— Me faça esse favor — minha mãe brada ao voltar para a loja. Ela é uma tempestade raivosa quando retorna, limpando a sujeira da fruta com as costas da mão enquanto marcha ao balcão. Ainda há restos de laranja em suas presas quando se vira pro próximo cliente. — Deu cento e vinte ryōs. Vai querer sacola?

Suspiro e volto a organizar o novo estoque de pepinos. Era melhor apenas seguir o fluxo do que era uma manhã normal naquela mercearia, ou então sobraria para mim também.